our words make worlds

Modern Language Research in the frontier of digital culture (Português)

Guest blog by Marcelo El Khouri Buzato

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Marcelo El Khouri Buzato 

In this guest blog, Marcelo El Khouri Buzato of the State University of Campinas, Brazil, discusses the analogue and digital fronteir of Modern Language reseach. 

Não faz tanto tempo assim – ou talvez faça, porque quinze ou vinte anos hoje são mais densos de história do que costumavam ser – falava-se, em educação, sobre "computadores como uma segunda língua". A ideia era pensar nas interfaces digitais como um novo tipo de escrita, e nas suas convenções, ícones, janelas e métodos (apontar e arrastar, copiar e colar etc.) como uma nova gramática que todos teriam que aprender para poderem participar dos modos de ofertar e receber informações, mobilizar e ser mobilizado pelo outro, de uma cultura que ia se digitalizando. Mesmo quando passamos a falar do digital como modo, e, consequentemente, de letramento(s) digital(is), a metáfora sobreviveu nas palavras de educadores como Marc Prensky e seus "nativos digitais"  e de midiólogos como Lev Manovich e sua language of new media.

Hoje, o digital nos é tão familiar, tão "materno", no sentido de nossa dependência dele,  que mesmo as metáforas pensadas para permitir que ele nos mobilizasse cognitivamente a despeito do verbal viraram "língua", de alguma forma. Pergunte a um jovem o que é aquele quadradinho com dois pequenos retângulos vazados posicionado no topo da interface de um processador de textos e ele dirá que é "salvar" ou "guardar";  jamais dirá "disquete". O que era um ícone que remetia a um floppy disk virou um logograma como $ ou @, uma palavra, afinal. É assim que o passado da língua, nesse caso, da escrita, revive no devir do digital: no convívio tenso e criativo entre as semânticas, sintaxes e pragmáticas da máquina e das culturas.

Assim, quem pesquisa (ou ensina, ou aprende) línguas modernas está necessariamente pesquisando (ou ensinando, ou aprendendo) num ambiente transcultural, em que o "natural" e o "técnico" precipitam uma língua mais "moderna", por isso também mais híbrida,  mais ou menos como o ambiente cultural de um curumim brasileiro, "evangelizado" e falante da língua geral no final do  Século XVII. O vernáculo que nasce nas zonas de contato entre computadores e línguas naturais não é feito, todavia,  só de símbolos e estruturas sintáticas:  ele se revela, principalmente, nos novos modos de agirmos uns sobre os outros pela e com a linguagem. Ele está impregnado de valores e métodos que, junto com os mecanismos de representação disponíveis, inauguram uma outra mentalidade.

Por exemplo, um dos modos de demonstrar hospitalidade a um estranho entre brasileiros é (era?) atendê-lo, amavelmente, quando ele lhe para na rua para pedir uma informação. Por isso mesmo, uma parte importante dos cursos de língua portuguesa como língua adicional ensina (ensinava?) algo parecido com "Olá, você pode me informar ... por favor?". Há algo de universal, ou quase, nessa pragmática, porque ela está ligada a uma ética que se instaura pelo olhar trocado entre dois humanos, como explica  Emmanuel Lévinas, e portanto independe das línguas, fonemas, sintagmas ou lexemas utilizados. Ainda assim, no Brasil dos smartphones – temos um por habitante, matematicamente falando – esse comportamento vem se tornando  algo considerado um pouco rude, ou tomado como falta de letramento digital, ou de argúcia, ou de recursos para comprar um smartphone, por parte do solicitante.

 As coisas podem ficar ainda mais complicadas quando duas línguas diferentes entram em cena – algo que o digital deveria favorecer,  mas não necessariamente. Certa vez, ao desembarcar na Califórnia, adquiri um chip de celular e, ao sair da loja, já queria ligar para casa e repassar o novo número. Me dando  conta de que não sabia o código para interurbano internacional nos E.U.A. instintivamente, perguntei a um adolescente que passava na calçada qual era "the code to call abroad", ao que ele respondeu, surpreendido: "Did you Google it?". Disse que não, porque acabara de comprar o chip e ainda não tinha Internet – o que foi uma desculpa para não me ter ocorrido perguntar ao Google antes de incomodar um estranho – sim, sinto que o Google me é mais íntimo do que um humano na rua. Serei só eu?

O jovem se dispôs a "Google it" para mim, mas não conseguiu, porque, assim como eu, não sabia como designar o "dial out code" propriamente, possivelmente porque não fazia sentido saber essas coisas na era da voz sobre IP na Califórnia. Sentindo que estava abusando, pedi o smartphone do garoto emprestado e fiz a busca em português. Agradeci, sorrindo. "No problem!", ele disse, subindo no skate e guardando o celular no bolso de trás da bermuda.

Antes do digital, sobretudo numa cidade pequena do Brasil, a situação teria gerado uma corrente dialógica, em que cada um que não soubesse a resposta repassaria a pergunta ao próximo transeunte e assim por diante, até que houvesse solução, ou que alguém rompesse a corrente por falta de opção. Como explicou Mikhail Bahktin,  as línguas naturais se mantém vivas, se expandem e se transformam, por meio desses enunciados em cadeias dialógicas, de modo análogo ao das células que vão repassando seu DNA às próximas, antes de morrer, sendo que a vida é justamente essa passagem, esse movimento, e não a exitstência célula em si.

Os livros, as mídias, os meios de transporte e outros recursos da cultural letrada-moderna-industrial ajudaram, e ainda ajudam, essas cadeias a se estenderem no tempo e no espaço, mas, ao mesmo tempo, tornam a língua mais "conservadora", porque carregam enunciados sem vida, descolados do seu contexto cultural imediato, mais imunes a acidentes e mutações. Com as mídias digitais, as coisas estão mudando rapidamente. Não só faz menos sentido perguntar códigos a outras pessoas, como também saber códigos e nomes de códigos para mobilizar máquinas está se tornando desnecessário, até mesmo no caso das senhas em virtude da biometria.

Não é que as máquinas sejam – nunca serão, é minha aposta –  capazes de mobilizar e ser mobilizado por uma língua natural como faz um adolescente situado, mesmo com um estrangeiro. É que os agentes digitais sendo insistentemente programados e treinados  para tentar simular o comportamento discursivo de falantes de línguas naturais, de tal modo que nós possamos ensiná-las a participar das cadeias que mantém as línguas vivas, correlacionando nossos desejos, emoções, necessidades e identidades com  seus significados estatísticos, algorítmicos e lógicos. Como bons "delegados",  no dizer de Bruno Latour,  elas podem beber dessa corrente os dados e metadados de que precisam para, mais rápido do que a língua, fazerem chegar até nós, para fins de consumo, aquilo que nós mesmos ainda nem sabemos que estamos prontos para pensar, desejar e, claro, consumir.

Assim, creio que o "triálogo" entre mim, o adolescente californiano e o Google seja uma boa analogia para um dos modos como a pesquisa em línguas modernas e o florescimento da cultura digital estão imbricados. Não se trata de uma "troca de serviços" como no caso da linguística do corpus e outros ramos das humanidades digitais versus o processamento de linguagem natural e a mineração de textos. Trata-se de como se constroem sentidos nas diferentes línguas mediante os valores, métodos, rituais e mentalidades que florescem na fronteira entre o sentido, a informação e a emoção ou, como dizem Karen Knorr-Cetina e seus colegas, na transição entre o social e o pós-social.

Quem faz pesquisa em línguas modernas  hoje precisa estar disposto a fazer trabalho de campo nessa faixa de fronteira. Tal qual o sujeito que sabe quando é correto perguntar algo a um transeunte ou ao Google, quem pesquisar nessa fronteira fatalmente adquirirá um tipo de competência bilíngue, interdisciplinar, intercultural que está no próprio cerne do fenômeno que chamamos de cultura digital, embora muitos pensem, ou queiram, que o digital elimine as  ambiguidades do humano e das culturas que as línguas protegem como ninguém! Como um bom code-switcher, o pesquisador em línguas que esbarra na divisa entre o componente proposicional/computacional e o componente ilocucional/axiológico do sentido e da vida não precisa nem recuar nem rompê-la. Seu trabalho é justamente mostrar que pedir (receber) informação a (de) um estranho na rua será sempre legítimo, porque a língua vive disso, e nós vivemos pela língua; mas também  que perguntar ao Google ou emprestar o Google a quem pergunta sejam dois gestos simétricos de solidariedade entre estranhos.

 

Trabalhos citados e sugeridos:

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal . São. Paulo: Martins Fontes, 2003.

LÉVINAS, Emmanuel. Totalidade e infinito. Trad. José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70,
1988.

KNORR-CETINA, Karen. Sociality with Objects: Social Relations in Postsocial Knowledge Societies. Theory, Culture & Society, v. 14, n. 4, p. 1–30, 1 nov. 1997.

KORTZ JR, William J. Computers As a Second Language: For Teachers Too! Learning Technology newsletter, v. 3, n. 1, 2001. Disponível em: <http://lttf.ieee.org/issues/january2001/index.html#11>. Acesso em: 15 jun. 2017.

LATOUR, Bruno. Where Are the Missing Masses? The Sociology of a Few Mundane Artifacts. In: BIJKER, W.; LAW, J. (Org.). . In Shaping Technology/Building Society: Studies in Sociotechnical Change. Cambridge: MIT Press, 1992. p. 225–258.

MANOVICH, Lev. The language of new media. Cambridge, Mass.: MIT Press, 2002.

PRENSKY, Marc. From digital natives to digital wisdom: hopeful essays for 21st century learning. Thousand Oaks, Calif: Corwin, 2012.

 

Mais sobre o assunto

BUZATO, Marcelo El Khouri. Can reading a robot derobotize a reader? Trabalhos em Linguística Aplicada, v. 49, n. 2, p. 359–372, dez. 2010. Disponível em <http://dx.doi.org/10.1590/S0103-18132010000200004> Acesso em 15 jun, 2017.

BUZATO, Marcelo El Khouri. Cidadania pós-social e encontros pós-humanos: integrando sentido, informação e emoção. In: BUZATO, M,. E. K.  (Ed.). Cultura Digital e Linguística Aplicada: travessias en linguagem, tecnologia e sociedade. Campinas, SP: Pontes Editores, 2016. p. 173–204. Disponível em: <http://www.academia.edu/28968258/Cidadania_p%C3%B3s-social_e_encontros_p%C3%B3s-humanos_integrando_sentido_informa%C3%A7%C3%A3o_e_emo%C3%A7%C3%A3o >.